Lygia Clark

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O Poeta do século desembarca no Brasil. [Diário 2]

Tipo de documento
DiárioTipo de documento
PeriódicoTipo de documento
Forma de registro
ImpressoTécnica
Idioma
Local (cidade/país)
Data aproximada
1984
Descrição
Matéria de jornal guardada dentro do diário de Lygia Clark.
Data início
1984
Autor(a)
Transcrição texto

O POETA DO SÉCULO DESEMBARCA NO BRASIL [matéria de jornal anexada ao diário]

José Neumanne Pinto


Afinal, o leitor brasileiro que não lê em inglês tem acesso à obra (apesar de fragmentária e incompleta) do maior poeta deste século. As livrarias estão começando a receber a edição da Hucitec e da Universidade de Brasília de Poesia de Ezra Pound (266 pp, Cr$ 8 mil 500), com tradução de Haroldo de Campos, Décio Pignatari, José Lino Grünewald e Mario Faustino.

Até esta edição, também crítica, porque plena de ensaios bem pensados sobre o grande poeta norte-americano (nascido em Dailey, Idaho, em 1885, e morto em Veneza, Itália, em 1972) apenas mil privilegiados receberam a edição do Ministério da Educação e Cultura, distribuída gratuitamente, de 17 de seus Cantares,traduzidos por Haroldo de Campos. Além dessa, existem em português as traduções esparsas de poemas da primeira fase da obra de Pound, das Personae, vertidos para o português por Mario Faustino e publicados no Suplemento Dominical do JORNAL DO BRASIL.

A edição Hucitec-UNB preenche uma das mais largas lacunas do mercado editorial brasileiro e se transforma não apenas no lançamento mais importante em livro de poesia em língua portuguesa este ano, mas também num marco fundamental da edição de poesia estrangeira em todos os tempos no Brasil. Afinal de contas, Ezra Pound não foi apenas o poeta que revolucionou a poética deste século com seus Cantares, mas também a mão fundamental que podou os excessos de um texto conhecido como marco histórico da poética anglo-saxônica contemporânea – The waste land, de T.S. Eliot; o crítico que revalorizou o que havia de mais importante na poesia chinesa e na produção dos bardos provençais e o agitador cultural que viabilizou a publicação de obras-primas como Ulisses e Finnegans wake de James Joyce.

Foi Ezra Pound, uma mente agitada e criativa, quem lançou o lema make it new (renovar) na tradução dos poemas, resolvendo, de forma brilhante, uma das mais difíceis missões intelectuais da historia da humanidade, a tradução da poesia, ou melhor, a tradução do intraduzível. O lema de Confúcio e de Thoreau, o teórico americano da Desobediência Civil, foi levado à extrema radicalidade pelo poeta alto, magro e ossudo que relançou trovadores provençais como autênticas personae literárias suas. Ezra Pound criou a crítica do poema pela tradução e desenvolveu uma teoria didática sobre a arte poética que se tornou clássica nos dias de hoje. Foi ele quem dividiu os criadores em “inventores” (aqueles que manobram com competência as linguagens já descobertas), entre outras divisões.

O Pound teórico e didático é bem conhecido no Brasil, pois A arte da poesia e ABC da literatura já têm edições em português. O poeta que marcou o século ao lado de nomes como Vladimir Maiakovski, Fernando Pessoa, Rainer Maria Rilke, Frederico Garcia Lorca, T.S. Eliot e William B.Yeats, contudo, só foi lido no original. E, mesmo para os que conhecem bem o inglês, a leitura de Pound não é fácil. Afinal ele escrevia poemas polilingües (misturando grego, italiano, chinês, francês, e até provençal) e cheios de referencias históricas e culturais. A leitura de sua obra é um verdadeiro passeio pelo conhecimento do homem na direção do desconhecido.

“Sei somente que nada sei” e “cheguei tarde demais à incerteza máxima” são duas frases suas usadas por Augusto de Campos, o poeta concreto paulista que organizou a edição de Poesia e traduziu a maioria dos poemas, na abertura de seu ensaio introdutório ao livro. Augusto e Haroldo de Campos tem antigas relações intelectuais com o poeta americano. Haroldo entrevistou-o em Veneza em 1959. Augusto fotografou seu tumulo em 1976. Visita e homenagem são reconstituídas no livro, ilustrado com fotos do poeta, acompanhando-o ao longo da vida. A primeira fase (Personae) é ilustrada com uma foto do jovem estreante (1908-1910). O homem maduro de Lustra (1916) aparece com seu luzido bigode preto. A imagem do velho de Cantares, com a marca registrada da barbicha pontiaguda e dos olhos brilhantes, emoldura na reedição dos Cantares traduzidos por Haroldo de Campos.

Infelizmente, o livro não é bilíngüe. De qualquer maneira dificilmente poder-se-ia encontrar melhor tradutor do que os cinco reunidos. A primeira fase da poesia de Pound foi – em sua maioria – traduzida por Mario Faustino, que lhe dedicou inclusive um método para leitura dos Cantares, sua obra máxima: os 117 cantos integrais foram reunidos e publicados em 1970, o poeta planejava publicar 120 e morreu quando se entregava à tarefa de escrever os finais. Em 1958, na página “Poesia-experiência” do Suplemento Dominical do JORNAL DO BRASIL, o poeta piauiense, morto num desses desastre aéreo em Lima, Peru, em 1962, trabalhou os textos das Personae literárias do mestre como Cino (“E cantarei das aves alvas/ nas águas azuis do céu,/ as nuvens, o borrifo de seu mar”).

Os poetas Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari e José Lino Grünewald dedicaram-se a um paciente trabalho de recriação, em português, da obra de Pound, adotando seu lema make it new e o conselho que deu aos jovens poetas: curiosity (curiosidade). Não é uma tarefa fácil a de traduzir Pound, pela enorme variedade da obra do poeta.

De seu fascínio pela poesia chinesa, que traduziu e criou, surgiram poemas ideogramáticos e hai-cais. Augusto de Campos traduziu “Papyrus”, um autêntico poema-escândalo à sua época: “Spring... too long...gongula...” foi transformado na recriação do poeta brasileiro em “Domingo... tão longo... gongula...” Mas Pound, um fã ardoroso de Homero, também se dedicou ao poema épico. Haroldo de Campos traduziu assim um fragmento do Canto 79: “A lua tem um rosto inchado/e quando o sol clareou baixios e batalhões/do Ocidente, nuvem sobre nuvem/o velho Eos dobrou seus cobertores/minhas mãos não ofenderam Eos nem Hespero”.

Pound fez sonetos de métrica e rima rigorosos e foi adepto do verso livre criado por Walt Whitman. Tinha pouco tempo para escrever, pois se dedicava muito a ajudar os amigos como William Carlos Williams, James Joyce e T.S. Eliot. Mesmo assim, deixou poemas antológicos para serem ouvidos e outros também para serem vistos.

Poesia percorre esse universo fascinante de forma incompleta, mas satisfatória. Sua leitura dos ideogramas chineses e dos cantos dos trovadores como Arnaut Daniel é facilitada pelas explicações de Augusto de Campos, pelas cartas trocadas entre o poeta e seus discípulos brasileiros do Grupo Noigandres, pelas citações d método de Mário Faustino para leitura dos Cantares (agora são 19, 14 integrais e cinco fragmentos traduzidos em português).

A magnífica edição de Hucitec e UNB não omitiu também registro da patrulha ideológica sofrida pelo poeta por causa de sua adesão ao fascismo. Inimigo do capitalismo americano, Pound vivia na Itália quando surgiu fenômeno Mussolini e resolveu aderir. Fez pregações pelo rádio achando que a ideologia fascista combatia a “usura”, palavra chave de sua ideologia econômica, transformada em poemas em muitos de seus Cantos.

Acusado de traição, o poeta foi preso pelas tropas americanas de ocupação em 1945 e só foi libertado em 1958, quando foi morar com a família em Veneza. Preso numa cela de gorila em Pisa, Itália, lendo a Bíblia e Confúcio, Pound escreveu suas obras-primas, os Cantos Pisanos. E continuou a ser fustigado e punido pelo crime de haver aderido à direita armada antes da II Guerra Mundial. 

A releitura despatrulhada de Pound, seja em poemas como “O agravo da escadaria cravejada”(assim traduzido por Mário Faustino: “Os degraus cravejados já estão brancos de orvalho/é tão tarde que o orvalho ensopa minhas meias de gaze,/e deixo cair a cortina de cristal/e contemplo a lua, através do claro outono”), seja na entrevista que deu a Haroldo de Campos em Rapallo, na bem cuidada edição que chega às livrarias é missão de quem quer entender o que foi feito de poesia neste século em que vivemos.

Afinal, como escreveu E.E.Cummings, “ele foi para a poesia deste século o que Einstein foi para a física”.           

ID
65315