LIGIA CLARK BUSCA NA PINTURA A EXPRESSÃO DO PRÓPRIO ESPAÇO
A inauguração da nova mostra da Galeria de Arte das FOLHAS, marcada para amanhã, às 18 h e 30, trará ao público paulistano a oportunidade de entrar em contacto com os trabalhos da artista Ligia Clark , pessoa que está realizando uma das mais revolucionárias experiências nas vanguardas das artes plásticas e que já sentiu a repercussão de suas obras internacionalmente. A artista, nascida em belo Horizonte e radicada no Rio de Janeiro, concedeu uma entrevista às FOLHAS ocasião em que relatou pormenorizadamente a seqüência de estudos e experiências que tem realizado no campo das artes plásticas. Seus trabalhos estarão no recinto da Galeria das FOLHAS simultaneamente com obras do pintor Lothar Charoux e do escultor Franz Weissmann. Os três artistas concorrerão ao prêmio Leirner de Arte Contemporânea para 1958.
A LINHA ESPAÇO
Foi uma experiência que começou em 1954, na observação de uma linha de contacto de dois tons contrastantes, numa colagem. Opasse-partoux colorido era exatamente uma das cores da colagem. Observei que, no momento em que havia o contraste entre a cor da colagem e a do passe-partoux, a linha estava sendo integrada, absorvida, desaparecia enquanto que, no outro pedaço, em que não havia o contraste, onde as cores coincidiam ela (a linha) não só continuava a aparecer mas, como eu viria a constatar mais tarde, era umalinha espaço. Chamei a esta linha linha orgânica pois ela existia em si, não era uma linha desenhada, gráfica, e possuía possibilidades intrínsecas a ela mesma, dando-me, assim, novos caminhos de pesquisas.
MOLDURA PARTICIPANTE DO QUADRO
Continuando a história de seus trabalhos, declarou a artista:Tive a idéia de começar a fazer quadros com grandes molduras, ainda utilizando a tela e a tinta de bisnaga, numa tentativa de continuar a explorar essa linha (linha orgânica). Nesta fase do problema já se tornava mais claro para mim. Toda a questão estava em arrebentar o compartimento espacial da superfície da tela de modo que o espaço tratado pudesse correr para fora na própria moldura, numa tentativa de que ela (a moldura) participasse de um todo formal. Desde o princípio, a preocupação desta pesquisa era o sentido do espaço. Havia já aí, uma tentativa de que o espaço externo, penetrando no quadro, atuasse nele diretamente. Realizei seis quadros dentro desta mesma fase.
CONTACTO COM A ARQUITETURA
Passei, praticamente, um ano e meio a dois anos sem poder ir adiante nesta pesquisa, até que um dia encontrei uma relação direta entre esta linha chamada organicae a linha que separa a bandeira da porta do caixilho, esta mesma linha, enfim de emenda entre os vários materiais, como tacos de assoalho. Pensei, inclusive, nas linhas de emenda entre os tecidos e todas as outras linhas que fazem a junção de dois planos na superfície.Empreguei-me num maquetista a fim de aprender a executar maquetes e compus varias delas explorando esta linha organica, fazendo ao mesmo tempo com que ela fosse o modulo gráfico espacial de toda uma superfície. O que tentava realmente era uma continuidade que abrangesse não só uma superfície mas todo um ambiente. Nessa época, já sentia a necessidade de expressar um espaço curvo que funcionaria dentro desse ambiente, como espaço circundante.
Tentamos levar adiante esta possibilidade formando uma equipe composta de um arquiteto, um escultor, uma pintora (no caso seria eu) e de uma pessoa capacitada em dosar as cores segundo as necessidades psicológicas do homem. Infelizmente, não conseguimos realizar este objetivo. Foi publicado na Itália uma tese de Luci Teixeira, a pedido de Lionello Venturi, sobre esse nosso grupo, pois Lionello Venturi se entusiasmara ao ver, através de fotografias as possibilidades que as maquetes sugeriam. Nessa equipe, todos trabalhariam desde o espaço inicial do arquiteto, procurando a maior integração possível tanto do escultor como do pintor em relação ao projeto arquitetônico.
SUPERFICIES MODULADAS
Passei a executar o que eu chamo agora de superfícies moduladas. Já não havia mais tela nem moldura: eram placas de madeira compensadas recortadas e colocadas sobre duratex, pistoladas com tinta industrial. Nesse período, eu jogava com formas seriadas repetidas, quase que num sentido de grega, e não considerava estas superfícies senão como um campo experimental para medir todas as possibilidades dessa linha espaço.
Numa conferência em belo Horizonte, nessa mesma época, expressei bem meu ponto de vista ao dizer, entre outras coisas, quese a arte concreta prescinde do caráter expressional que sempre foi a característica de uma obra individual então é de [...] uma obra de arte individual em si mesma. Referia-me ao que eu entendia por arte concreta naquela ocasião e que era o que fazia. Daí, a meu ver, a necessidade de um trabalho de equipe em que o artista concreto poderá se realizar, realmente, criando com o arquiteto um ambiente por si mesmo expressional.
EXPRESSAR O ESPAÇO
Somente em 1957 consegui voltar a essa característica expressional que caracteriza a obra de arte individual pois, conscientemente, o que eu já tentava era expressar o espaço em si. Abandonei, conseqüentemente, toda forma seriada por julga-la insuficiente para expressar o espaço que não fosse puramente ótico. Desejava reestruturar toda a superfície para expressar um espaço que não fosse puramente ótico e sensorial. A formulação deste espaço veio através de formas puramente simétricas, ambíguas, expressando múltiplos espaços, provocando tensões ambivalentes. Nessa fase a preocupação já era desenhar o espaço em si, tendo eu suprimido as cores que poderiam acrescentar ou tirar essas tensões que elas possuem como característica própria.
Após esta fase, a formulação de um espaço curvo veio através de grandes formas brancas que seriam, vamos dizer, sólidos planificados nesse mesmo espaço curvilíneo, mas o problema não era de fundo e figura e sim de espaços negativos e espaços positivos. Estes espaços positivos e negativos, só na medida em que se completavam mutuamente é que eram expressos. Só apareciam nesta interrelação.
PARTICIPAÇÃO DO OBSERVADOR
O espectador não é meramente um assistente que leria esse espaço de uma maneira puramente ótica em que o tempo seria expresso de modo apenas mecânico. Ele participa ativamente num sentido integral. É como se ele entrasse dentro desse espaço organicamente.
LINHA LUZ
A partir dessa ultima serie, comecei a pesquisar umalinha espaço com outras características : é uma linha sulcada, mais larga do que a antiga linha espaçoe pintada de um branco brilhante que aparece nos limites externos da superfície, confinando diretamente com o espaço exterior. Hoje, ela teria mais sentido para mim comolinha luz. As primeiras realizações incluíam, ainda a linha obliqua, dentro da superfície. A medida que fui observando as variações dessa mesma linha em função desta última fase (linha luz), comecei a suprimir a diagonal e passei a compor simplesmente com horizontais e verticais, pois uma tensão obliqua surge, automaticamente, quando a linha externa penetra espaços interiores da superfície que é sempre preta. Linhas absolutamente iguais, horizontais e verticais, produzem entre si uma tensão obliqua distorcendo um quadrado: o espaço então se revela ali como um momento do espaço circundante.
PRINCIPIOS DA ARTISTA
Finalizando sua entrevista, Ligia Clark dispõe sua serie de princípios nos quais alicerça toda sua vida de pesquisadora plástica. A superfície modulada é a materialização da idéia-espaço. A superfície é construída em função da necessidade da idéia-espaço a exprimir. A superfície só é bidimensional quando preexiste à idéia-espaço. (seria como se a superfície bidimensional preexistente fosse a espessura desse espaço.
A superfície, para mim, passou a ser um suporte puramente abstrato, só tendo função na medida que este mesmo espaço tem que ser expresso. A idéia-espaço deve ser realizada dentro do seu próprio tempo pois a idéia é o espaço abstrato e a realização é um espaço-tempo. E como o símbolo da nossa época é o espaço, a necessidade é de expressar mesmo este espaço.