Lygia Clark

Archive

Textual

O "Absoluto" era o meu "Vazio Pleno" [diário 2]

documentType
DiaryDocument Type
artMedium
DatilografiaArt Medium
inLanguage
PortuguêsLanguage
date
1963
dateBegin
1963
timeline
1
author
transcription

Numa noite tive a vivência de que “o absoluto” era o meu tão conhecido “vazio pleno”.

O que está dentro dele são todas as potencialidades que possam a vir a acontecer, e esta maneira de sentir já muda um pouco pois é mais abstrata do que a anterior pois ainda não tinha percebido que se todas as potencialidades existem então é porque na realidade não existe mais do próprio vazio. Mas é um “vazio pleno” de significado expressivo e por isto pleno na sua essência. Sinto que é muito ligado ao “caminhando” pois nele se encontram todas as possibilidades de opções. (Também da arquitetura “espaço para todas as situações” pois o vazio la´é a própria plenitude da forma e por conseguinte é o seu “avesso” que deixa de ser avesso para ser uma totalidade e também por ser um espaço poético indeterminado na sua função.

(Tudo ali pode ser sendo na sua função expressiva. É uma função puramente poética pois funda a consciência do “abrigo” como realidade potencialmente expressiva. (Pedrosa)

Se o “absoluto” é o “vazio pleno” então o ato transcendente é ao ato expressivo que dá sentido imediato a esse “vazio pleno”. Estamos por aí se vê impregnados de magia poética na própria vida. Isto é curioso se levarmos em conta as polaridades sempre presentes pois foi dado ao homem contemporâneo essa possibilidade sendo ele o mais imediato ser de todas as épocas. Então estamos sendo hoje mais vivos que jamais fomos, e mais mortos também pois, o nosso problema no contraponto desta transcendência é o imediatismo da nossa época, a despersonalização e a falta de um sentido religioso consciente.          

A mística do homem contemporâneo é (a mística do ato transcendente) imanente é a incorporação do momento, como saudade cosmológica.

Estaremos tão próximos assim do fim? Esse fim não seria vivido como tal pois ele mesmo anuncia talvez um novo começo?

- É o prenúncio no novo do nascimento. É a morte de realidades espirituais passadas e o renascimento de uma nova ética. Isto sempre foi o que caracteriza a evolução de uma expressão na arte. Agora acontece na própria vida. Será uma nova época em que arte e vida serão incorporadas de tal forma que obras anônimas serão o testemunho desta época? Estive pensando noutro dia na magia do objeto sem função. Seria a função uma maneira de impedir que se sinta a realidade poética do objeto? Hoje quando um artista do movimento Pop arts coloca objetos sem uso numa superfície pode aí sentir-se a essa poética. É um objeto da época que ainda se usa mas que, sendo retirado especificamente do seu lugar de ordem prática readquire o seu poder poético. Tudo é muito próximo do imediato transcendente imanente. Qual seria então a diferença entre o “caminhando” e o pop art? No caminhando é o ato imediato transcendente imanente, não é um objeto que toma força ou forma expressiva ao passo que no Pop art é o objeto que readquire expressão e nos dá a sua poética. No caminhando é o ato imediato que toma forma expressiva. Então no Pop art é a relação do sujeito-objeto que ultrapassa a relação imediata e encontra a sua poética, ainda através do objeto percebido.

No caminhando o objeto (fita de moebius) é um suporte (sem expressão formal identificável) e o importante não é o resultado formal do antes ou do depois. A única importância é o fazer, o corte que abre os caminhos até um final imprevisível que está dentro como potencialidade.

Há uma superação da forma poética só contando o tempo poético (ato transcendente imanente). É o problema do ato e não mais o problema de sentir a duração através da forma expressiva.

A forma expressa sempre um espaço: no bicho havia já este espaço sendo revelado intrinsecamente pelas potencialidades do seu tempo expressivo. No caminhando porém a forma (estrutura) não tem nenhuma importância como tal mas somente como este “vazio pleno”cheio de potencialidades de tempos (atos) e é este mesmo tempo que encontra o seu caminhando e se revela na medida em que há o ato. Então a estrutura é somente um suporte abstrato como na fase “preta de linha branca”.

Volto a essa fase que para mim foi a mais importante realização dentro da minha evolução na superfície. Começo a fundir dentro de mim é claro os dois pólos pois o bicho de onde saiu o “caminhando”, era consequência da fase de Guggenhein e a fase preta que nasceu na mesma época que o Guggenhein era outro caminho. Sempre achei que a fase Guggenhein era orgânica e a fase preta de linha branca era metafísica. Agora seria a fusão do metafísico e do orgânico como totalidade. O bicho é uma totalidade viva como um organismo vivo.

O caminhando é a totalidade do ato transcendente.(imanente)

- Foi dado o nome de caminhando aos meus últimos trabalhos, pelo carater absoluto do ato transcendente imanente. Além disto a maneira como este ato se dá é relacionada com todo o problema do “vazio pleno” que traz em si todas as potencialidades do ato e no que nele está implicado (a opção o imprevisível que deixa de ser uma potencialidade para se concretizar na propria ação.).

- A própria fita de moebius tira toda a relação do espaço pratico do homem, dando-lhe um tempo sem princípio nem fim para que ela se realize como realidade metafísica.

- Quando me perguntam o que sairá deste caminhando eu digo: Eu não sei, você não sabe: só se percebe na medida em que ele se revela.”

- Cada caminhando é uma realidade metafísica que se revela na sua totalidade, dentro do seu (do espectador) tempo de expressão.

- É o próprio absoluto que você tem nas mãos.

- É uma potencialidade. Ele e você-realidade única, total, existencial. Não há diferenciação entre o objeto e o sujeito. 

- É o seu próprio corpo a corpo existencial: o “vira-ser”.

- Acontece na realidade uma fusão, você terá suas próprias respostas a medida que você opta.

- Essa relação ainda metafórica mesmo com o bicho torna-se no caminhando, existencial.

- O caminhando tem um circuito de potencialidades indefinidas que serão definidas na medida em que você o incorporando, passa a vivê-lo.

-Só há um tipo de duração- a do ato.

O ato é o que caracteriza o caminhando, não pertence ao caminhando como conceito a priori, mas só existe neste diálogo que você estabelece entre você e a vivência metafísica do o fazer.

Sempre me perguntei se pelo fato da minha evolução ser tão rápida se não seria um sinal de que morreria cedo. Agora depois que tomei consciência de tudo o que escrevi sinto o problema de outra maneira. A época é que se modifica vertiginosamente. Sou produto desta época no sentido imediato e vou além dela no sentido de perceber e catalizar mil e uma revelações que estão no ar. Não fazemos mais nada do que isto. É a função do artista e disto já tomei consciência há bastante tempo.

Se eu me transformo e por conseguinte fui transformada pelo próprio trabalho é que há uma grande transformação em potencialidade para ser captada. Vou a medida que meu trabalho me elabora captando cada vez mais adiante e por conseguinte cada vez me elaboro um pouco mais. O caminhando pois é o meu fim mas um fim de posição em face do problema da expressividade contemporânea. Morro com esta expressividade mas renasço dentro de um outro conceito, o do vira-ser no ato imediato transcendente imanente. Só a morte total traz em si mesmo o nascimento, total. Talvez também foi por isto que nunca me senti uma pintora ou uma escultora e que jamais poderia ser uma arquiteta.

Afora minhas limitações naturais eu sou um veículo onde se expressa toda uma posição do homem em face à realidade contemporânea. O problema não é fazer arte mas sim de elaborar o próprio auto-retrato de uma nova realidade e se a expressão já caminhou tanto que exige essa expressividade direta do sujeito-objeto, então as formas são expressões antigas pois eram ainda a transferência sentida através delas (formas) e percebida pelo sujeito, que caracterizava o conceito de arte.

Mesmo se me provarem que o “caminhando” não é mais arte, então eu mandarei a arte a merda e farei coisas como o caminhando que tenha real significação para época e o homem contemporâneo, mesmo que ele não se aperceba deste novo significado.

Seria uma espécie de participação cósmica do homem comum a esta conquista do homem cosmonauta no espaço no seu sentido profundo de se situar dentro de um outro conceito vivencial de tempo -espaço.

É a aventura do metafísico. Não foi à toa também que, quando o homem vai para o espaço, ele já não tem um conceito religioso fora dele; também não foi de graça que neste momento a crise do conceito do bem ou do mal lhe deixa somente a responsabilidade do “ato”. É a totalidade sem mistificação do passado ou do futuro. Jamais a meu ver o homem esteve tão na eminência de ser no sentido de inteireza, o divino, o humano, a fraqueza, a força, o sentir o não sentir; tudo é uma realidade interior sem desculpas sem medos, sem a irresponsabilidade ou a negação da sua inteiração. Como não há mais o poder de transferência ele passa a viver a própria arte fazendo parte da sua totalidade.

Ele é o absoluto na medida em que realiza suas potencialidades em atos, optando consciente, abrindo o seu próprio “caminhando” interior no tempo-ato. Agora ele sabe que ele é ele que se constrói, morrendo e nascendo a cada minuto numa transformação imanente.

O que seria então Pop art ?

Uma posição antiga como conceito de arte pois ainda há transferência sujeito-objeto. O homem reconhece e vivêncía a sua transcendência imanência ainda no objeto que expressa sua poética. No fundo a poética não é do objeto em si, mas este, passa a ser espelho da poética interior do homem, como em todas as épocas foi arte. Quer dizer que sempre houve a necessidade do homem encontrar uma espécie de suporte onde sua expressividade interior pudesse se revelar. Hoje revelar essa expressividade é retirar o suporte e fazê-la imanar na própria duração do ato. Depois do caminhando eu me pergunto se não vai haver um redescobrimento do gesto em todas as situações por mais funcional e prático que ele seja. Talvez seja impossível, pois, para que isto se dê, deve haver uma disponibilidade interior que já bane de antemão o gesto de significado prático e imediato. Então é através do caminhando que ele se dispõe interiormente ao próprio significado expressivo pois o gesto no sentido prático é gratuito.

Não se poderá fazer um caminhando numa estrutura aberta, pois, o importante é a continuidade da expressão do caminhando nos seu próprio sentido expressivo como também o do encaminhamento do homem a um espaço continuo interior.

O que vai ser de mim depois disto? Se eu caminhar com a obra, eu estarei salva, pois, perderei tanto do imediatismo que, fazer ou não uma obra de arte, me será indiferente pois para mim será realmente uma expressão passada. Se eu puder participar do ato com toda sua transcendência imanência eu me alimentarei nele mesmo. (no amor é impossível, pelo menos o foi na experiência com M.S. pois havia um desgaste total). Também aí não havia o meu eu, “bicho”, participando independente do psiquismo.

Na vida real sem o problema da afetividade eu me sinto ótima pois perdi toda e qualquer pressa no procurar, deixo fluir o que está acontecendo sem buscar uma realização a mais. Aprendi um pouco a sabedoria do caminhando em relação a vida. Aí deixei de ser imediatista e a minha solidão não é mais nem um problema de comunicação, é só de aceitação. Sei que está em mim não no outro o meu caminhando. Isto eu juro que aprendi.

Será suficiente?

Será o meu “caminhando pela vida” a aventura que espero viver levando diretamente ao homem comum a possibilidade dele se encontrar nesta expressão, a minha salvação? O dia em que eu puder fazer o meu caminhando acho que jamais voltarei a parar e será esse caminhar no sentido imediato que irá compensar na vida a perda do imediato? Acho que me salvo sim, pois, desde os bichos, eu perdi completamente o sentido de perda em relação ao tempo. Evidentemente que perdi este equilíbrio na maturação do “caminhando” e dos “espaços para todas as situações”. Agora é me integrar mesmo nesta nova realidade é que passa a ser o problema. Quando eu me pergunto já é a crise. O negócio é me pôr tão passiva dentro da coisa como uma morta e aí estarei sendo salva no provisório, que é a única continuidade hoje possível para mim. O que eu preciso é me deixar imanar na duração do momento, ato.

- Segue:  - o artista e a linguagem

                - o artista e a Bomba

                - o artista, problema religioso e o espaço-tempo.                   

ID
61945