Lygia Clark

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Breviário sobre o corpo - 2 [Diário 2]

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DiaryDocument Type
artMedium
DatilografiaArt Medium
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PortuguêsLanguage
date
1964
dateBegin
1964
author
transcription

Meus pés saõ peças mágicas pois, na medida em que os vejo, me vem a consciência de que a minha imagem é invisível e esta, eu a percebo. Objetos rasantes que afloram à superfície da terra, suas raízes embora invisíveis, estaõ plantadas na sua sola, raízes estas que se ramificam pelas pernas, tronco, cabeça, e são revertidas numa volta e revolta dentro do corpo, nervos telegráficos que as fazem retornar à sua origem, numa batida surda do código morse. Catalizador sensual, nos dá a dimensaõ do sensorial, toque de campainha no alto ou no baixo, comprimindo-nos o ventre dando-nos o alarme do o sentir. A sensaçaõ do solo abrasado pelo sol, da umidade do lodo, da frescura do verde clorofila da erva, da argila, do estrume, do triturar da areia que cede sob eles na medida do passo, do líquido que os afoga no macio e no veludo. O caminhar no fim da tarde, os olhos perdidos na distância, é o encontro do “vazio pleno” na sua existência, parada no tempo, distância comida pelos pés, asas do corpo, trem que é submergido pelo. túnel, asas de aviaõ que cortam a distância como uma faca, rodas de coche vagarosas de carro de boi tangentes. De aro de bicicleta, de borracha abrasante dos pneus, de batidas de remo que cavam a água como ventre aberto por afiada lâmina. Toda a vivência do “ser” transportado, da máquina na sua dinâmica, rodas gigantes que giram sobre o redondo, máquina de carne que o gesto tritura, batedeira de vitaminas, ventiladores de pé, de assento, ar refrigerado, a porta que se abre e se fecha, o trem que passa veloz. Cascos de cavalo cujo pé é feito de um só dedo, esse revestido por enorme unha, pés de galinha, mão espalmada, aberta horizontal e chata, no gesto no o ciscar, o espasmo no o agarrar-se. Há uma distância taõ grande entre eles e os meus olhos que eles mais parecem peças autônomas, seres vindo de outros planetas, espaço chato na sua rasura, dedos anônimos, que se tornam visíveis só no ato do corte das unhas. Quando se A criança ele é bem mais próximo de nós e o colocamos na boca, arco do corpo que procura uma unidade sem princípio nem fim, o engolimos como objeto independente e nesta incorporaçaõ. Há a funçaõ numa só peça, sem começo nem fim, experiência primeira da continuidade. A primeira brincadeira na infância, um par, uniaõ das solas dos pés, o ritmo da roda, primeiro ensaio da máquina primeira, da sociabilidade, do ato de fazer amor, do dar-se o abraço, do eu preciso de um parceiro, da fábrica da engrenagem das rodas, do movimento, do ato e da açaõ. No jogo de pular maré, o pulo num pé só, esforço da sobrevivência da idéia, do equilíbrio na mutilaçaõ do próprio corpo, do aleijaõ, do anjo que busca o equilíbrio na forma plana das asas, na busca da vivência do rabo já incorporado, gancho que substitui os pés, ponto de interrogaçaõ sobre o alto e o baixo. Corrida peça distância, o pé que se nega, que se entrega que se anula que renasce como peça falida mas ainda no crediário, que traz na sua sola uma fábrica do rir-se e a sensualidade do distanciado quando há a aproximaçaõ. Pés, base da coluna que é o corpo, coluna dórica, barroca, jônica, dependendo do que eles sóerguem, desde a mais delicada arquitetura, à mais violenta e sólida massa, de granito de alabastro, de mármore, de gelatina, de seda ou de lixa, em que ora predominam os cheios, ora os vazios. Base encravada num solo gretado, sola de boi.  

            Numa louca e fresca vargem, sola de carneiro. Em pedregulhos arquitetônicos, cascos de bode, em sinuosos e verdejantes caminhos de folhas, escritura oriental que arremata a barriga das larvas e dos louva-deus. Centopéia, a magia da automatizaçaõ da engrenagem do ritmo obsessivo. Pés que pularam a cerca para roubar a manga do vizinho, que correm espavoridos, que soergueram uma diminuta arquitetura de galho em galho até o cimo do céu. Que se aproximaram do outro par, de sexo oposto, pisando-o numa linguagem muda, apaziguando-o e incorporando-o nos seus nervos, possuindo-o. Os pés mergulhados em sapatos novos, estes maltratando os dedos e dando-nos a percepçaõ da sua existência. Dedos que se esgarçaram em espasmos para que por entre eles a nicotina escapasse, que criaram crostas de defesa em sua superfície em forma de couraças doloridas, que foram devorados pouco a pouco pela unha calcificada pela unha calcinada, cascoraõ ingrato que perdeu o sentido do seu caminho. Pés que durante a grande crise, comeram voltas e voltas de “caminhandos” negaram a transportar meu corpo, que se aquietaram no tremor do tremor do descontrole nervoso, entocados na caverna dos cobertores, que se recusaram o meu transportar ao chuveiro, onde a água convidava a linguagem das coisas simples e quotidianas. Que se aparelha ao lado do outro, para no caminhar, encontrar o significado do par. Pés que soerguem a barriga grávida no movimento da larva que trabalha o vulcão, da fervura na panela, da onda macia que cobre o peitoril da forma, da bolha de sabaõ que escapa do canudo, do ar que enche o balão, dos dedos que se calçam na luva. Desde o começo, ele já traz em si toda a caligrafia da existência que o precedeu. Cicatrizes, pregas, rugas, guerras, cataclismas e vulcões. Contraponto da luta pela sobrevivência da verticalidade. O nó do fio que costura, da corda que amarra, da corda que enforca, do cabresto que puxa, do chicletes preso entre dentes, da base do quadrado, princípio da escala numérica anunciada pelo passo. Passo que é o próprio ritmo, a pausa na música, o espaço entre a bola que salta e o chaõ, ou do pé que a chuta, do piscar do gás néon, da paisagem que foge diante da janela do trem ou do automóvel, do intervalo do gesto, da oraçaõ que ultrapassa o entendimento, da soma das parcelas, da flexaõ dos joelhos, da fumaça que sobe, da vida que surge vertical do ventre da terra. Do passo surdo na madrugada, do correr alegre da meninada, da cadência do enterro, do compasso do exercício, do batuque da dança. Pés estirados na cama, de gente que dorme ao defunto que acorda. É preciso que ele perca toda a sua potencialidade de verticalizaçaõ para que a morte o disvirtue na perda do seu equilibrio, no sentido prático do seu espaço.Horizontal, ele ainda aponta para o alto numa linguagem muda e adquire pela primeira vez o sentido das maõs postas para a oraçaõ, é o adeus dos pés ao tronco e cabeça, esta abaixo do seu espaço, desmoronada, degolada, agora rasante e chato no contraponto do sono ou da morte.

ID
65155