Lygia Clark

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Breviário sobre o corpo - 4 [Diário 2]

documentType
DiaryDocument Type
artMedium
DatilografiaArt Medium
inLanguage
PortuguêsLanguage
date
1964
dateBegin
1964
author
transcription

Tive o seguinte sonho: me olhando ao espelho vi que a minha cara era lisa como um mamaõ e no lugar de um dos olhos, eles haviam desaparecido completamente, naõ havia pálpebras, nem a cavaçaõ que lhe correspondia. Vi atentamente que havia ainda um pontinho na pele no lugar em que havia sido a pupila. Pensei: vou pegar num lápis e desenhá-lo de novo. Naõ tive angústia nem sentimento de perda. Quando acordei senti um sentimento de horror e me deu muito medo de estar ficando louca. O que seria a falta do olho sem os respectivos cheios e vazios? Perda de personalidade? Nivelamento das polaridades? Nova visão que deve estar germinando dentro do meu eu? Ando num estado esquisito. As vezes me dá uma especie de élãn quando projeto qualquer idéia arquitetônica, como “casa dos saltimbancos.” Mas este élãn passa rápido e sobra um desencanto infinito. Desde a crise conseqüente a experiência dos “caminhandos” eu mudei radicalmente por dentro. Me sinto como se tivesse sido traumatizada de uma maneira irreparável. Depois deste sonho até a minha tranquilidade que era o meu equilíbrio desapareceu e ando angustiadissíma de novo e tenho medo...... Onde anda meu equilibrio? Meu élan pela vida ou pelo meu eu? Talvez seja uma nova fase pois o equilíbrio foi arrebentado e as polaridades brigam. “A casa de saltimbancos” é uma experiência em que os cheios e os vazios tem uma tal correspondencia que senti como se tivesse achado a equivalência na forma da luva, quando a gente a vira pelo avesso. Talvez o sonho revele esta correspondência e no momento em que tomo consciência do problema a falta da correspondência surge de novo através da briga das polaridades. Mesmo o medo à minha tranqüilidade surge. Seria um problema na busca da unicidade do um? Quando escrevi esta frase no “breviário sobre a boca”, vi uma placa de automóvel número um. Levei um choque terrível parecia magia. Seria o esforço da compreensaõ da minha solidaõ? Estou tentando me aceitar só como unidade e nesta medida começo a bolar exatamente a casa dos saltimbancos em que o problema é da coletividade. Ai de mim. Onde anda o meu maravilhoso sentido da eterna guerrilha dentro do meu eu? Onde o élan a energia que nunca me deixou ser deglutida pelo meu trabalho? Pela vida? Muitas vezes ultimamente me vem o conhecimento da inutilidade da minha existência depois da descoberta dos bichos. Vivi demasiado em relaçaõ ao meu proprio trabalho.

            Nesta crise terrível, me dei conta que estou incapaz naõ só de me interessar pelo meu trabalho, como também pela vida. Vida afetiva nula e sexual idem. Esta noite porem sonhei que estava descascando minha pele completamente. Olhei para minhas coxas e puxei a pele que saiu inteira como uma luva. Me sinto mais tranqüila pois vi que uma grande mudança se processa em mim, mesmo que eu naõ saiba. Fiquei imediatamente mais desperta e quando acordei já senti um grande bem estar e fui rever meu trabalho. No ano passado em 64, realizei nada menos que: caixas de fósforos, bichos de borracha, trepantes e a casa do poeta. Este ano a única coisa que realizei foram os bichos sem dobradiças, os monstros, mais complexos e a casa do saltimbanco. Ainda duas maquetes de bichos com dobradiças com eixos descentralizados. Vamos ter paciência e esperar. Estou com o projeto da casa de caixotes cuja idéia vem me perseguindo desde a doença do ano passado e de onde saíram as caixas de fósforos e agora a casa de saltimbanco. Devo estar passando também por uma transformaçaõ pela própria idade pois estou com 45 anos. Realizei também no princípio deste ano a idéia dos elásticos com um pedaço de arame. Voltarei a ela um dia. Vou realizar um enorme trepante que começa num cômodo e vai terminar noutro, agarrado pelos portais. Vou também realizar os biombos-bichos, idéia de 1963. A minha tendência como sempre o foi é de generalizar a crise como fim total e agora: de expressaõ. Os trepantes já saõ consequência do caminhando e os de borracha idem. Os monstros cujo problema abolí completamente o elemento formal também é uma conseqüência dos mesmos caminhando. Como eu mesma posso ver, naõ foi um fim mas sim um começo. Isto é que afetivamente ainda naõ entrou como ganho no meu eu. Estou cega e só vivencio esta experiência pelo lado do fim da arte. Objetivamente sei que já saí para outras expressões conseqüentes desta experiência mas ainda não realizei isto dentro de mim. No fundo acho que recuei pois é uma questaõ de sobrevivência. Estou viva, quer aceite ou naõ e a vida continua. As idéias também. Vou me salvar de qualquer maneira pois a vida é uma realidade poderosa e ela esta aí me propondo o meu viver. Meu desencanto, minha neurastenia que sempre existiram estão desta vez como prenúncio de fim e não como das outras vezes, de mudança. Ou sempre foi de fim e eu já me esqueci?....

ID
65156