Lygia Clark

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Eu li sobre a Teoria do Anti-Universo [Diário 1]

documentType
DiaryDocument Type
artMedium
DatilografiaArt Medium
inLanguage
PortuguêsLanguage
date
11-07-1968
dateBegin
11.07.1968
location
author
transcription

Paris, II/7/1968


Ontem eu li qualquer coisa sobre a teoria do Anti-Universo, numa revista de ficçaõ. Comecei a pensar em toda a minha vivencia em relaçaõ ao “absoluto”. O Absoluto seria a totalidade do Universo e do Anti-Universo. Quando penso no “absoluto” (tudo que somos e fazemos já estaria lá) naõ o fazemos agora porque lá está, mas sim está lá, porque o fazemos agora. A consciencia do “agora” onde tudo está inscrito inclusive é “devenir” e do antigo conceito que trazia as duas coisas separadas, é a meu ver a total diferença que começa a mudar todo o conceito da existencia da arte. O “anti-universo” seria antes a mistura do devenir e do absoluto ainda separados e naõ o conceito dos dois como uma totalidade. Daí toda a comunicaçaõ na arte em forma transcendente e matafisica até agora expressa. Enquanto naõ havia esse conceito da totalidade, só poderia haver a comunicaçaõ atravez da transcendencia. Nesse momento a imanencia do ato, da consciencia do mesmo, do “agora” que traz em si o devenir, pode dar um outro tipo de comunicaçaõ pois na medida em que o espectador se propõe a completar uma proposiçaõ a expressaõ é dele e só o pensamento é do artista. Nessa participaçaõ, há outra vez a fusaõ do pensamento-expressaõ que sempre foi a caracteristica de uma obra de arte. A comunicaçaõ passa a ser o proprio ato imanente. Seria nesse caso um expecie de exercicio para no futuro o ser sentir uma tal totalidade na propria existencia que o existir poderia trazer em si toda a poética nele mesmo. Pela primeira vez o existir consciste numa mudança radical do mundo em vez de ser somente uma interpretaçaõ do mesmo.

Seria essa uma atitude por excelencia existencial? Tenho tido vivencias muito dramáticas. Vejo uma escuridaõ total e o homem no começo das coisas, como um primitivo captando o seu proprio corpo, recompondo-o, redescobrindo o gesto, o ato, comendo ervas como o primreiro homem primitivo, diante da natureza. Mas a vivencia é como se houvesse uma catástrofe ou o mundo passasse a ser um outro planeta, extranho e selvagem. Pode ser evidentemente uma vivencia ligada ao meu interior que talvez tenha redescoberto algo profundo na data sem memória do passado. Quando tive a vivencia de que o mundo naõ passava de um grande bicho e que vivemos na sua superfície sem o sabermos, irrigados pelo mijo e excremento do animal era a vivencia do dentro da terra que trazia em si a grande descoberta. Nesse ponto, era o descobrir da totalidade desse mesmo bicho e da nossa existência fazendo um todo no seu interior. Hoje com esse conceito do Anti-Universo eu estou confusa pois naõ sei ligar as vivencias passadas a naõ ser no sentido do ato na sua totalidade que traduz a própria totalidade dos dois  universos.

Se na medida em que eu escrevo isto agora nesse momento, ha no outro universo a mesma experiência feita por uma pessoa idêntica a mim, que tem a mesma indagaçaõ e vivência, entaõ naõ seria eu apropria dentro do absoluto como uma verdade eterna ? E se eu fizesse isto agora porque está lá acontecendo o mesmo eu naõ teria opçaõ e viraria uma fatalidade.

E se acontece isto lá porque está acontecendo aqui, eu continuo optando apesar dessa verdade estar inscrita já dentro do “absoluto”. Seremos entaõ uma verdade eterna dentro do absoluto. Isto eu já o havia intuido ha bastante tempo, negando ao filme Mariembed toda e qualquer semelhança com o tempo Proustiano. Era a unica no meu grupo que tive essa percepçaõ do o fazer-se, e desse ato, já ser parte do absoluto. E esses momentos de iluninuras que temos? Como o poderiamos propor nessa nova medida? A iluninura seria talvez um flashe do encontro dos dois universos com um todo.

Daí o artista que ainda dava uma poética total sua e agora, que essa consciência já começa a se concretizar, o convite que fazemos ao outro é de sentir a própria iluminura atravez do ato e ele espectador mesmo se encontra na sua totalidade atravez das nossas proposições. Quando houve a grande crise onde me senti liquidada como autora ainda total de uma expreçaõ da obra de arte intuia que eu naõ passava de um poço onde o expectador se debruçava e para tirar um som desse poço, ainda era ele espectador que jogava dentro, uma pedra. Ainda intuí que num cemiterio, o morto era taõ anonimo que na verdade era o vizinho. A sepultura era que lhe dava a individualidade. O que daria hoje individualidade ao artista desde que ele dá a expreçaõ da obra ao outro? Talvez a caracteristica ainda das proposições. Esse poço no fundo naõ passava de um “vazio pleno”, onde varias coisas poderiam ser tiradas de lá mas sempre pelo outro e naõ por nós mesmos. Daí o meu texto: somos os propositores, trazemos em nós um grande vazio. Já naõ achamos sentido numa proposiçaõ completa: pensamento e expreçaõ. Somos os propositores: pedomos-lhe ajuda. Uzem por favor este vazío e o completem pois, só assim, nos sentiremos cheio de significados. Somos o molde da (vida:) está em você soprar dentro do nosso molde o sentido da nossa existencia que só terá sentido na medida em que você se encontrar no mesmo. Somos os propositores: a nossa proposiçaõ é o dialogo a dois ou mais. Sozinhos naõ existimos, estamos a mercê do par. Somos os propositores: enterramos a “obra de arte” como tal (e os solicitamos a palavra) para que o pensamento viva atravez do ato. Naõ lhe propomos o passado e tampouco o devenir mas trata-se do “agora”.

ID
65483