Lygia Clark

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Pensamento Mudo [Diário 1]

documentType
DiaryDocument Type
artMedium
DatilografiaArt Medium
inLanguage
PortuguêsLanguage
date
1971
dateBegin
06.1971
timeline
1
location
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transcription

Pensamento mudo

junho, 1971

Depois da fase “Homem Estrutura viva de uma arquitetura viva e biológica” me veio com frequência essa formulação, Pensamento-Mudo. Estava numa fase sem formulações vivendo a vida com grande intensidade às vezes num estado tão febril e feliz arrebatador como se estivesse drogada, recompondo a imagem do casal em sonhos belíssimos como uma totalidade, procurando também me assumir como Eu deixando de ser “O outro” – depois da experiência de Carboneras – talvez tentando recompor meu Super ego sozinha na falta do parceiro, imagem do homem que sempre esteve por traz me impulsionando no passado todo, sem a qual nada podia fazer. Vitalidade elétrica, e febril me perguntava como poderia me sentir tão feliz sem motivo aparente, em que o quotidiano e as pequenas coisas da vida me eram suficientes para me drogar eufórica sem depressões...Todo mundo me perguntando se já havia recomeçado a trabalhar, e eu já, tempos antes da minha ida ao Brasil, havia formulado só com o corpo e a visão através das mãos uma nova percepção do O Outro, e pensava que o Pensamento-Mudo teria que ser formulado através de proposições como ato agora os outros conceitos o foram. Uma noite de insônia amarrei o seu significado: Pensamento-Mudo já estava sendo formulado: Era o simples viver sem fazer qualquer proposição, era o reaprender ou por outra havia através das outras proposições reaprendendo a viver e estava me expressando através da vida! O salto talvez para o que chamo de Os Precursores que são os jovens que não formulam obras de arte mas já vivem essa poética antes formulada através ou de objetos ou de proposições.

Eis-me aí qual testemunho da minha obra já formulada, agora o testemunho já não é ela mas sim eu-obra-pessoa humana.

Estive lendo sobre a Anti-Psiquiatria e sobre Laing. Vejo um problema muito curioso. Esquizofrênicos que reaprenderam a viver se fazendo.pintores como no caso de uma doente que estava no último estagio de regressão e vejo o meu caso em que também fazer arte foi para sobreviver a crise do nascimento de Eduardo e agora que deixo de fazer arte que me ensinou a viver aprendendo mais madura o significado da vida nela mesma sem sentir necessidade de formular mais nada!

O que já havia pressentido ha tempos é que toda a forma de arte, proposições, toda a forma de religião, e a droga e mesmo o amor no grande sentido procuram o que se chama de comunicação. Hoje de tempos para cá, tudo isso está se fundindo e também o processo que se faz com doentes mentais para regredi-los e reestrutura-los. No fundo, o problema seria sempre o mesmo e antigamente haviam varias modalidades de expressa-los com títulos diferentes. Hoje os títulos caíram, os gêneros desapareceram e só a palavra comunicação é a ponte que tem ainda qualquer significado profundo.

Não é a toa que a palavra gênio acabou também. Outra vez a percepção de que somos uma merdinha sem nome, anônimos para reformular novos conceitos ou grande conceito global.

Artes plásticas no fim, teatro idem, literatura em crise, e a música? Essa continua a ser o que se poderia dizer a comunicação por excelência que ainda dá uma medida toda sua? É também comunicação mas não entendo nada de musica e só sei que é coisa que mais me toca e que a escuto o dia inteiro. E a arquitetura? Ainda teria função dentro da sua necessidade ? Estou como sempre muito confusa pois não tenho cultura, nada sei a não ser formular o meu trabalho. Também se soubesse fazer uma formulação geral, o sentido do mundo não seria o antigo sentido ainda cheio de gêneros e nomes diferentes? Nem sei porque estou escrevendo tudo isso. Talvez na tentativa de um dia fazer um depoimento de toda a minha vivência e como cheguei a isso que chamo de pensamento mudo.

Antes eu tinha medo até de reler esses cadernos de tão angustiante me pareciam minhas vivências. De dias para cá passei os olhos neles e não me chocaram. Era como se fosse outra pessoa e não eu que havia vivido tudo isso. Bom sinal. Nada angustiada nem relendo isto, mas devo confessar que antes, quando estava integrando a imagem do casal, fiquei numa obsessão enorme por mim mesma e achava até que eu era um estado patológico. Pensei até em conversar com o Carlos Augusto Niceias que é inteligentérrimo e sempre me ajuda.

Tenho sonhado e ontem sonhei que vi Red e Carmem Portinho.

Ela que é morena estava loura e diferente e ele parecia com o meu ex-analista Gerson Borsoe. Ele me olhou e vi nos seus olhos que ele não estava me achando tão bem como eu própria estou....será o super ego que tanto procuro ou qualquer coisa do passado ainda vivido como perda nessa faze magnifica ?

Um detalhe: quando acordei e recomecei a tossir muito, como todas as manhãs uma tosse seca tive um calafrio de terror. Pensei no Reed que morreu com cancer no pulmão e vivi o sonho como um aviso-pensamento-magico, e me pergunto o que será menos doentio, viver na base do pensamento magico ou fazer proposições mágicas?

ID
65567

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